Análise Bacurau Bacurau

Por que 'Bacurau' merece receber prêmios?

outubro 28, 2020PP Blog

Bacurau

Cena de Bacurau (Foto: Divulgação).

Bacurau, lançado na metade do ano de 2019, é uma produção cinematográfica nacional de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O filme, com um acentuado tom de humor, narra a história de um pequeno vilarejo no interior do sertão brasileiro, no qual, os cidadãos, após inúmeras anomalias na região, descobrem que estão sendo atacados: ao mesmo tempo que percebem a chegada de estrangeiros na cidade, cadáveres são sucessivamente encontrados. A partir disso, a comunidade local vê a necessidade de procurar um mecanismo de defesa, ora pela utilização da violência, ora pela resistência cultural.

Além de todo o enredo, perfeitamente escrito, o filme estabelece uma ponte entre a ficção e a realidade por meio da presença metafórica de críticas sociais, transformando, assim, a obra numa completa narração do atual cenário político e social brasileiro. Tal alegoria traz um estranhamento e incômodo ao telespectador que, a todo momento, questiona-se e tenta entender a progressão da história. No entanto, talvez essa não linearidade convencional no roteiro, acrescida de um forte cunho crítico é o que torna Bacurau único, especial e de extrema relevância ao cinema nacional. Portanto, o longa-metragem não busca agradar ao público em geral, mas escancarar as mazelas que a desigualdade social provoca. E meu (minha) caro (a) leitor (a), cabe a nós compreender  alguns pontos dessa fita.


Ficha Técnica 

Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Ano: 2019

País: Brasil, França

Elenco: Sônia Braga, Silvero Pereira, Bárbara Colen, Thomas Aquino, Karine Teles.

Composição Musical: Mateus Alves, Tomaz Alves Souza.

Canção principal: Réquiem para Matraga – Geraldo Vandré

Lista de Prêmios:  

Prêmio do Júri -  Festival de Cannes

Melhor filme - Festival de Munique

Melhor filme - Festival de Lima

Vencedor de 6 categorias no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro:

1. Melhor Longa-Metragem Ficção

2. Melhor Ator: Silvero Pereira

3. Melhor Direção

4. Melhor Roteiro Original

5. Melhor Efeito Visual

6. Melhor Montagem Ficção


Por que bacurau merece receber prêmios?

1 - Visibilidade do Cinema Nacional

“O Som ao Redor”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Cidade de Deus”, “Central do Brasil”, “Tropa de Elite”, “O Auto da Compadecida”, “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Esses são, dentre outros, os filmes que representam o espectro do Brasil e, com certeza, Bacurau encontra-se no meio desses.

Tudo proposto por Bacurau é simples e direto, desde a pitada de uma ficção-científica, até o mais profundo de cada personagem, estabelecendo um longa divertido, mas que, ao mesmo tempo, é de extrema relevância ao Brasil, colocando a pulga atrás da orelha do público a respeito de nosso futuro trágico. 

Portanto, em um país onde a cultura é constantemente ameaçada, Bacurau revela a sua faceta de um filme que propõe uma autenticidade brasileira, com a conexão entre os diversos gêneros cinematográficos e com a sua população simbolizando, de fato, o Brasil que possui suas dificuldade e problemas, mas que ainda guarda a resistência de um povo.

2 - A metáfora contra o imperialismo
A distopia de Bacurau é marcada pela resistência do avanço imperialista na região, em que é destaque, primordialmente, a identidade anti-imperialista do pequeno povoado no interior do sertão brasileiro. 

A princípio, os autores do filme, Kleber e Juliano, partem de uma perspectiva determinada a quebrar os estereótipos criados a respeito do sertanejo, demonstrando que o discurso de “povo atrasado” e “bárbaro” é completamente falacioso. Como por exemplo, é destaque em uma das cenas iniciais do filme, em que o Plínio, o professor, demonstra aos seus alunos através de um tablet onde se localiza Bacurau. Além disso, é pertinente destacar a utilização da internet como a principal ferramenta de comunicação da cidade, que integra desde a criança até a pessoa mais velha.

Em segundo, após a passagem da primeira parte do filme, é introduzido ao enredo dois personagens que se apresentavam como turistas perdidos em Bacurau, porém, na sequência, é revelado ao público que na verdade são forasteiros. Esse casal, adentra a cidade e, de imediato, demonstram seus preconceitos enraizados que, representando sulistas, tentam inferiorizar o nordestino. E, sem sombra de dúvidas, uma das melhores cenas do filme é quando esses turistas entram em um bar, no qual há a indagação da mulher: “E quem nasce em Bacurau, é o que?”, e sem exatidão a criança responde: “É gente!”. Tal resposta é determinante para a consolidação de uma identidade cultural da sociedade ali representada, como também existe a consolidação da crítica da obra: o olhar preconceituoso que possuímos.

(Acesso em: https://br.pinterest.com/pin/837951074401250730/)
Ainda sobre os turistas, é representado em uma cena, poucos minutos após a saída deles de Bacurau, a mesa de reuniões da equipe de americanos e dos dois brasileiros, em que esses indivíduos tentam demonstrar fidelidade e lealdade ao grupo de estrangeiros, bem como se portarem como brancos, vindos de uma região mais próspera, porém há a ridiculirização dos gringos sobre os brasileiros. Essa metáfora, estabelecida pela equipe técnica de Bacurau, é símbolo de uma parcela da população brasileira, que tenta, a todo custo, sacrificar a soberania e seu próprio povo em prol do processo imperialista, mas que são meros cidadãos brasileiros perante ao olhar opressor.


3 - Ignorância vs. Conhecimento

Dentre diversas simbologias que o filme traz, há dois extremos que são notáveis: a ignorância e o conhecimento. Sendo o primeiro abordado através da negação da história de um povo. A partir da fotografia é possível observar diversos planos de câmera que mostram o museu de Bacurau, inclusive quando a comunidade recebe a visita dos forasteiros, duas personagens perguntam se eles desejam visitar o museu e, mesmo estando próximo deles, ambos negam conhecê-lo.

Nesse viés, o filme coloca o museu como fator simbólico da história daquele povo e não desperta o interesse em conhecê-lo, sinalizando uma forma de negação da história de Bacurau. Fato confirmado pela fala da forasteira: Quem nasce em Bacurau é o quê?, e respondida pela criança: É gente.

Nesse sentido, cabe ressaltar que ao procurar a localização de Bacurau no mapa, a cidade não é encontrada. No entanto, a mensagem reforçada na obra é que mesmo não estando no mapa e não tendo sua história ouvida, Bacurau permanece firme e resistente ao valorizar o conhecimento, entrando então no segundo extremo mencionado anteriormente: o conhecimento. Esse fato pode ser percebido a partir do ataque feito por dois estrangeiros, que já na cidade, uma das personagens começa a disparar vários tiros sobre uma escola. O que eles não contavam é que muitos moradores estavam ali escondidos esperando a hora de atacar, ou seja, a escola serviu como base de proteção para aquelas pessoas, portanto mais uma simbologia de conhecimento como poder e escudo.

4 - Violência em duas perspectivas: prazer e necessidade

Uma das maiores lições propostas por Bacurau é a presença de violência e como ela é interpretada em diferentes contextos e pontos de vista. Por exemplo, enquanto a população de Bacurau usa a violência para se defender, os estrangeiros a utilizam como diversão.  Mas como o filme especifica isso?

É possível notar o primeiro exemplo através da personagem Lunga - interpretado por Silvero Pereira – que logo no início do filme, aparece um anúncio mostrando seu rosto e está escrito: “Procurado”. Lunga é como um guardião de lá, e para se defender foi preciso que ele utilizasse violência, (como deixa implícito o filme). Ao se tornar procurado, ele teve que partir de Bacurau e ficar escondido. Enquanto isso, os estrangeiros durante uma reunião decidiam quem levaria a “honra” de matar, e ao mesmo tempo, estavam bravos com os forasteiros pelo fato de que eles mataram “uma de suas mortes” em outras palavras, por roubar as mortes que eram para ser dos estrangeiros.

Por outro lado, ao entrar na estrada de Bacurau a mensagem é clara: “Se for, vá na paz”, ou seja, a população daquele local ainda avisa para as pessoas irem bem-intencionadas, caso contrário, elas irão se defender a todo custo! Nesse sentido, é interessante apontar os psicotrópicos que os moradores tomam, pois estes são como um amuleto de proteção, já que toda vez que alguém toma um desses comprimidos é quando está chegando em Bacurau, quando está ferido ou antes, se preparando para um ataque, assim como é retratado no encerramento do filme.

Outro ponto importante para ressaltar é a trilha sonora da longa-metragem e como ela se relaciona diretamente com o tema da violência, pois a música principal que toca ainda no primeiro ato do filme e também no final, chama-se Réquiem para Matraga de Geraldo Vandré, cuja letra diz o seguinte: 

Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar
Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar

Uma curiosidade dessa música é que ela pertence ao filme A hora e a vez de Augusto Matraga e Matraga se refere a um personagem do escritor Guimarães Rosa, cuja representação é de uma pessoa violenta que vive na trama um dilema entre vingança e arrependimento.  Fato esse que não seria curioso, pois Rosa, na obra Grande Sertão: Veredas, propõe uma nova visão a respeito do nordestino, em que há a ampliação da vida do sertanejo a uma dimensão universal, explorando dilemas humanos, não como realizado por autores regionalistas, que estabeleceram uma visão voltada à seca. Nesse contexto, é possível observar esses traços em Bacurau, por meio da não protagonização absoluta de temas estereotipados sobre a comunidade de local. Ao observar a letra da música podemos ver no trecho: “Tanta vida pra viver, tanta vida a se acabar, com tanto pra se fazer, com tanto pra se salvar” a representação não só da perda de vidas como também a ausência de recursos naturais, uma vez que a população sofre com questões relacionadas à falta de água. 

Para finalizar, assim que os forasteiros chegam em Bacurau, a mulher pergunta o significado deste nome e é respondido como: Um pássaro (Veja bem, não é passarinho, mas sim pássaro) - E a forasteira continua: Mas ele está extinto né? - Essa fala pode ser interpretada no viés violento do filme como o desejo de extermínio da população de Bacurau, já que o propósito dos estrangeiros era exatamente matá-los. Em contrapartida, a resposta que a forasteira recebe é que o pássaro não está extinto naquele local, ele aparece à noite e é bem bravo. Seria o pássaro mais uma simbologia representando os moradores de Bacurau?

5 - Complexo do vira-lata (a nossa vontade de pertencer a outro Brasil)

Afinal, quem nunca desejou viver em outro lugar? Fugir da situação atual, ir para outro país? Quem nunca preferiu ver um filme de hollywood que um brasileiro por acreditar ser ruim? O complexo do vira-lata reflete esse sentimento de constante negação pelo ser brasileiro e a romantização de tudo o que vem de fora é melhor. Mas, como esse termo surgiu?

Essa expressão foi criada pelo jornalista, dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues, em meados do século passado, quando o Brasil perdeu a Copa do Mundo da década de 50 e continuou a perder no futebol, sempre aparentando ter medo de se impor perante os adversários – E mal sabiam eles do 7x1…


Isso acaba demonstrando como o brasileiro tem baixa autoestima, que acaba se subestimando nas competições, que está sempre depreciando a própria cultura, a economia, a moral e história nacionais. Além de admirar cegamente tudo o que vem do exterior como algo superior. Com isso surgem alguns estereótipos brasileiros, como a incompetência, a preguiça, a malandragem, o carnaval, a beleza feminina, a riqueza da natureza (que claramente é desvalorizada), ou o famoso “jeitinho brasileiro”.

Bacurau é um filme que apresenta os dois lados da moeda quando os forasteiros estão tendo uma reunião com os gringos. Enquanto os forasteiros insinuam que vieram do sudeste e que não tem nada a ver com as outras regiões: Uma região muito rica, com colônias alemãs e italianas. Somos mais como vocês - Que despreza as outras regiões e se refere aos gringos que logo em seguida desprezaram seus diversos traços etnicos, que demonstram a miscigenação brasileira: Como podem ser como a gente? Somos brancos, vocês não são brancos. - Outro concorda e ainda ironiza com um binóculos apontado no rosto dos brasileiros - Eu não sei... Eles parecem brancos, mas não são. - e ainda demonstra ser preconceituoso - Os lábios e nariz dela entregam. Demonstrando a auto-depreciação brasileira e o egocentrismo internacional.

Assim, o filme nos atenta sobre nossas atitudes perante a realidade, onde precisamos pensar em nação e nacionalismo a partir de todas as experiências brasileiras, mergulhando profundamente nas raízes de nossa história, reconhecendo nossos erros e acertos, sem romantizar o que fomos, ou acreditar em uma idealização imaginária do nosso passado.

Fonte: Se for, vá na paz, 2019. Mariana Sales (@mrnsales).

6 - Bacurau fora do mapa, Brasil fora do mundo 

Ame-o ou deixe-o. Esse era um dos slogans no decorrer da ditadura militar no Brasil, onde grande parte de quem se opunha ao regime acabava sendo exilado (para outro país ou para o além). O exílio nas décadas de 60 e 70 expulsou gerações que lutavam por diversos projetos, como as reformas de base ou a redemocratização, embora houvessem distintas ideias e apoios, a ditadura trouxe uma única ideia: a intolerância.

Ao ser exilado naqueles tempos, você não era considerado alguém que queria o bem da nação e quando aplicamos isso a Bacurau, um território retirado do mapa, ou seja, uma nação exilada do mundo, podemos dizer que há uma desumanização da população.

De acordo com cientistas, a desumanização de uma espécie foi essencial para a nossa sobrevivência e há teorias de que existiriam outros homos se nossos antepassados não tivessem ajudado em seu extermínio, seja como auto-proteção ou por torná-los perigosos.
Assim, o filme nos apresenta os dois lados da desumanização: das pessoas de Bacurau e dos gringos, que fazem o que fazem para diminuir a culpa de suas atitudes, considerando-as um bem próprio e uma espécie de ajuda à humanidade, como mencionado por um deles: Vamos matar esses bandidos. No caso da população de Bacurau, a desumanização é colocada como um instinto de sobrevivência lógico, como proteção e a única escolha, além da morte. O longa metragem nos faz refletir sobre cada lado, a população de Bacurau não é santa e muito menos os visitantes.


Autoria: Bruno Alves de Oliveira Fernandes, Cindi Santos Nascimento e Ingrid de Andrade Rolim (alunos do 2º ano de Comunicação Visual integrado ao Ensino Médio).
Orientação e revisão: Professora Lícia Frezza Pisa.


REFERÊNCIAS:

MORAES, Eduardo Carli de. NÃO SEREMOS VARRIDOS DO MAPA – Sobre “Bacurau”, um filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles. A casa de vidro: Eduardo Carli de Moraes, 20 jul. 2020. Disponível em: https://acasadevidro.com/bacurau/. Acesso em: 22 out. 2020.


 MALAGRIS, Marcos. Bacurau | Colonialismo, Coletividade e Empoderamento [Crítica com Spoilers]. FarofaGeek: Marcos Malagris, 24 out. 2019. Disponível em: http://farofageek.com.br/filmes/bacurau-colonialismo-coletividade-e-empoderamento-critica-com-spoilers/. Acesso em: 22 out. 2020.


FARIA, Caroline. A Questão dos Bascos. InfoEscola: Caroline Faria, 29 ago. 2019. Disponível em: https://www.infoescola.com/historia/a-questao-dos-bascos/. Acesso em: 22 out. 2020.


BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Cult: Ivana Bentes, 29 ago. 2019. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em: 22 out. 2020.


MARQUES, vinicius. BACURAU apresenta um sertão neo-cangaceiro repleto de sangue e vida. UOL: Vinicius Marques, 12 dez. 2019. Disponível em: https://atarde.uol.com.br/cultura/noticias/2087729-bacurau-apresenta-um-sertao-neocangaceiro-repleto-de-sangue-e-vida. Acesso em: 22 out. 2020.

UOL. Por que 'Bacurau' ainda é relevante um ano após estreia; diretor comenta. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/29/se-for-va-na-paz-por-que-bacurau-e-relevante-mesmo-um-ano-apos-estreia.htm Acesso em: 13 out. 2020.

BRASIL DE FATO. "Bacurau" vence em seis categorias e domina o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/10/12/bacurau-vence-em-seis-categorias-e-domina-o-grande-premio-do-cinema-brasileiro. Acesso em: 16 out. 2020.

Música Réquiem para Matraga: https://youtu.be/MumHJnWwiOo


VÍDEOS:

METEORO BRASIL. Bacurau: A verdadeira Polarização #meteoro.doc. Disponível em: https://youtu.be/JW9vcFmK9Fw

N/A NENHUMA DAS ALTERNATIVAS. As simbologias de Bacurau (com spoilers). Disponível em: https://youtu.be/R-DX9hdBcus


IMAGENS:
Foto 2. https://br.pinterest.com/pin/837951074401250730/.
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